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quinta-feira, 19 de maio de 2022

Carta aberta de um advogado que não vai desistir


O sistema de cotas raciais em universidades públicas certamente é um tema capaz de inflamar os mais diversos debates. Quando se fala sobre a política afirmativa das cotas raciais nas universidades, o senso de julgamento da grande maioria é aflorado e, por muitas vezes, deturpa o seu verdadeiro sentido - ser parte da construção de um ensino superior mais igualitário no país.

Apesar da clara necessidade de existência do sistema de cotas, infelizmente ainda é comum encontrarmos pessoas que lidam com o assunto de maneira completamente distante da apropriada.

E a situação ainda pode se agravar, pois os julgamentos equivocados não se limitam à sociedade, se estendem também para as instituições federais de ensino e, até mesmo para o Poder Judiciário, que, no intuito de promover o respeito ao sistema de cotas, acaba violando por completo direitos de uma série de alunos.

Vamos explicar melhor.

Imagine que você viveu a sua vida inteira em um núcleo familiar em que sempre se viu como pardo, por mais que não tivesse consciência disso. A presença de pessoas negras na sua família sempre foi algo comum, até porque trata-se da característica que acompanhou a sua existência. Você é fruto de uma miscigenação e isso sempre permeou a sua família como algo comum. Afinal, aquilo que é comum para nós, não é questionado, ainda mais em se falando de um elemento cultural.

Por óbvio, você internalizou aquela identidade. Faz parte de você.

Seguindo o sentimento, você começa a externalizar para as pessoas a maneira com que você se enxerga. Essa externalização, apesar de extremamente íntima, nos é cobrada o tempo todo em uma vivência social. O tempo todo nós somos submetidos à autodeclaração.

Tanto é verdade que, caso eu peça para que você enumere quantas vezes ao longo de toda a sua vida foi cobrado que você assinalasse a sua cor em algum documento, provavelmente, você não saberia me responder. Foram tantas vezes, tantas burocracias vencidas e sem nenhum questionamento real quanto a isso, que está tudo bem você não se lembrar.

Some-se a isso o fato de que você possui parentes próximos que nitidamente são pardos, muitos deles até contando com documentos oficiais nos quais são reconhecidos como “pardos” ou “morenos”.

Após anos de estudos, dedicação, anos almejando e sonhando com uma vaga em uma universidade pública do país, você recebe a notícia da aprovação. Depois desse momento de felicidade, começa novamente a fase de burocracias exigidas no momento da matrícula, como a apresentação de histórico escolar, documento de identidade, comprovante de residência e, é claro, o termo de autodeclaração.

Veja bem, você se declarou como pardo uma vida inteira, qual seria o sentido de não se declarar como pardo em um momento como esses? Sentido algum.

Após superada a matrícula na universidade, momento no qual você comparece pessoalmente para entrega dos documentos aos servidores públicos que lá trabalham, é permitido a você que comece o curso. Assim, você estuda regularmente período após período, cumpre matéria por matéria, enfrenta prova por prova. O seu desempenho precisa ser exatamente como é exigido pela universidade. Afinal, sem isso você não será aprovado.

No entanto, um fato novo acontece.

A aprovação nas disciplinas do curso não importa mais, seu desempenho acadêmico é reduzido a algo sem importância. Agora, o assunto é outro. Você não irá mais se formar porque a sua autodeclaração – realizada por você da mesma maneira durante toda a vida – é considerada fraudulenta.

Do dia pra noite, você se torna um fraudador de cotas em universidades públicas.

Para não dizermos que a coisa é tão absurda como parece, é importante informarmos que existe um processo dentro da universidade para que você seja declarado um fraudador.

Vamos resumir melhor o processo:

  • a) Você é submetido a uma banca de heteroidentificação, que não estava prevista no edital de ingresso na universidade e que irá ignorar como você se enxergou durante toda a sua vida - assim como o seu sentimento de pertença e também todos os elementos culturais que influenciaram você, aplicando irrestritamente o critério do fenótipo, que também não estava previsto em edital;
  • b) Após essa avaliação, você receberá uma decisão completamente genérica e sem fundamentação específica alguma dizendo que você não foi aprovado pela banca de heteroidentificação e que, por isso, a sua matrícula será cancelada. Além disso, a universidade pode comunicar aos demais órgãos para que você responda cível e criminalmente;
  • c) Você poderá interpor um recurso administrativo contra essa decisão, mas a universidade não tem um prazo para julgá-lo e, por óbvio, ela não precisará respondê-lo de forma fundamentada;
  • d) A sua matrícula é definitivamente cancelada.

Diante de um procedimento absurdo como esse, é razoável que você procure um advogado para acessar a justiça, certo? Já que o seu caso precisa de uma análise técnica e legítima. Veja bem, você não foi verdadeiramente escutado até aqui. Você não conseguiu que te ouvissem até você perder a sua matrícula na universidade por consequência de um processo absurdo que, sem direito real de defesa, considera você um fraudador.

O seu advogado leva a questão à justiça e questiona o processo ilegal pelo qual você passou na universidade. Além disso, apresenta documentos oficiais seus, como o cadastro civil realizado há mais de 10 anos, em que a sua cor consta como parda. E não só isso, apresenta a documentação dos seus pais, em que os dois se declaram como pardos. Expõe fotos suas e de seus familiares. Entrega ao processo todos os elementos possíveis para restar esclarecido que você não é um fraudador.

No entanto, isso ainda não é o suficiente.

Leia mais:

https://caiotirapaniadvogados.jusbrasil.com.br/artigos/1504960137/carta-aberta-de-um-advogado-que-nao-vai-desistir

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