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sábado, 20 de agosto de 2022

A falsificação de atestado médico

Observe-se o crime de falsificação de atestado médico, previsto no artigo 302 do Código Penal:

Art. 302 - Dar o médico, no exercício da sua profissão, atestado falso:

Pena - detenção, de um mês a um ano.

Parágrafo único - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.

Sobre a brandura da pena, como disse Guilherme de Souza Nucci ( Código Penal Comentado, 8ª edição, pág. 1.025) “aponta a doutrina, com razão, ter sido indevida a previsão de pena mais branda ao médico, profissional que deveria sempre respeitar os deveres inerentes ao seu grau que dá atestado falso do que a prevista para o cidadão comum que mente para a comprovação de um documento – falsidade ideológica”.

Trata-se de crime próprio, formal, de forma livre, comissivo, excepcionalmente comissivo por omissão, instantâneo, unissubjetivo, plurissubsistente.

O artigo 28 do Decreto nº 4.780, de 1923, incriminava o fato, dispondo: “Dar, por favor, o médico atestado falso destinado a fazer fé perante a autoridade”.

É crime de menor potencial ofensivo, cabendo falar na hipótese de transação penal (artigo 76 da Lei nº 9.099/95) e sursis processual (artigo 89 da Lei n 9.099/95). É crime que deve ser objeto de aferição pelos Juizados Especiais.

A ação penal é pública incondicionada.

Trata-se de falsidade ideológica, que, como tal, ofende a fé pública. Ora, esses atestados médicos pressupõem uma capacidade técnica ou científica e neles se deposita maior fé pública, precisamente pela maior dificuldade de seu controle.

O delito descrito é crime próprio, como dito, que só pode ser praticado por médico, profissional diplomado e legalmente habilitado para o exercício da profissão no país. Não pratica o crime o veterinário, uma vez que a enfermidade deve versar sobre a existência ou inexistência de alguma enfermidade ou condição higiênica do indivíduo a que se destina o atestado (RT 320/295). Esse falso atestado do veterinário, dentista, parteira ou de outros profissionais ligados à área de saúde pode constituir o crime mais grave de falsidade ideológica (artigo 299).

Sujeito passivo é o Estado.

A ação incriminada consiste em dar atestado falso. É um atestado escrito, e, como a falsidade é ideológica deve ser materialmente autêntico. Tal atestado deve ser dado no exercício da profissão, o que significa que seu conteúdo deve relacionar-se com fatos cuja constatação incumbe ao médico realizar. Pode envolver um atestado de saúde ou da existência de moléstia, mas ainda pode referir-se a outros fatos como os que envolvem a origem de uma enfermidade, a existência de morte e suas causas, a vacinação e as consequências da moléstia ou ferimento etc. A falsidade poderá ser parcial ou total, pode ser praticada, como ensina Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal, volume II, 5ª edição, pág. 360), com a consignação de fato inverídico ou com a omissão de fato verdadeiro. Ensinou Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 360), que a falsidade pode não se circunscrever aos fatos, podendo referir-se a juízos feitos sobre os mesmos, matéria que deve ser vista com cautela, em face das possibilidades do erro. Mas o falso deve envolver matéria relevante, tendo em vista o conteúdo do atestado. O fim a que o atestado se destina deve ser juridicamente relevante. No entanto, disse Magalhães Noronha (Direito Penal, volume IV, 15ª edição, pág. 256): “Se um médico atesta que a gripe de seu cliente o impede de comparecer ao pretório, ainda que tal impossibilidade não seja real, pelo caráter brando da doença, não há falsidade, visto que a atestação exprime uma opinião enquanto o fato- gripe – é verdadeiro”. Não haverá crime, porém, se a falsidade se refere a circunstâncias secundárias ou acidentais, que sejam juridicamente irrelevantes. Como disse Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal, volume III, 22ª edição, pág. 242), “se no atestado, menciona-se que as visitas médicas foram realizadas em casa do doente, quando o foram na residência de seu irmão, essa circunstância não elide o fato da enfermidade, que é o que se deseja provar”, como ainda concluiu Magalhães Noronha (obra citada, pág. 256). De outra forma, o atestado, ou falso, referente a outro assunto que não à atividade médica (de idoneidade de residência etc) emitido pelo profissional pode configurar um outro ilícito penal.

Em resumo, como bem disseram Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e Fábio M. de Almeida Delmanto ( Código Penal Comentado, 6ª edição, páginas 602 e 603) “a interpretação, porém, não é pacífica, discutindo-se se o falso abrange só o fato e não o juízo ou opinião (Magalhães Noronha-Direito Penal, 1995, volume IV, pág. 179) ou ambos (Heleno Cláudio Fragoso – Lições de Direito Penal, Parte Especial, 1965, volume IV, pág. 1.030).”

A atestação de óbito, mediante paga, sem exame do cadáver, configura, em tese, o crime previsto no artigo 302 do Código Penal(RT 507/488). Se a finalidade for alterar a verdade sobre a causa mortis de um nascituro no Registro Público, tipifica-se o delito do artigo 299 e não o do artigo 302 do CP(TJSP, RJTJSP, 83/380).

Se o agente é funcionário público e pratica o delito abusando de sua função, incide o tipo penal do artigo 301 do CP(Certidão ou Atestado Ideologicamente Falso).

O crime consuma-se no momento em que o médico dá o atestado, ou seja, quando entrega ao interessado ou a terceiro, independentemente do destino que lhe é dado. É admissível a tentativa.

Já o uso do documento falso é previsto no artigo 304 do Código Penal. Poderá o médico responder como coautor pelo crime que vier a ser praticado com o atestado falso (falsidade ideológica, cárcere privado, na hipótese do artigo 146§ 1º, nº II, do Código Penal, se lhe conhecida a destinação).

Exige-se como elemento subjetivo o dolo genérico, que consiste na vontade dirigida à falsa atestação. Basta o dolo eventual. Comete o crime o médico ao atestar a moléstia quando não examinou o paciente, pois assumiu o risco de afirmar o que não existe ou negar o que é uma realidade. A conduta culposa não é punível. Entende-se que é possível o erro excludente do dolo, como diagnostico equivocado. A finalidade do atestado é irrelevante ou o motivo determinante da conduta (RT 675/377). Sendo assim é indispensável que o acusado tenha elaborado com dolo, ao atestar que o favorecido, quando do exame médico, estava em situação diversa da apresentada (Franceschini, Jurisprudência, 1975, volume II, n. 2.351).

Se o crime for cometido com o fim de lucro será aplicada, cumulativamente, a pena privativa de liberdade a pena de multa. Não se trata de ato de complacência que exige uma punição mais severa. Trata-se de forma qualificada. Há a especial finalidade de agir que é elemento subjetivo do tipo (dolo específico).

Consuma-se o crime com o fornecimento, a entrega do atestado ideologicamente falso, já que a conduta é “dar”, mas não se exige qualquer resultado lesivo. Mas nada impede a possibilidade de tentativa.

Questiona-se sobre a aplicação do princípio da insignificância a esse crime.

A esse respeito trago á colação, ab initio, posição do Superior Tribunal de Justiça:

" É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que, sendo o bem jurídico tutelado a fé pública, não é possível mensurar o seu valor, razão pela qual, inaplicável o princípio bagatelar. 2. Agravo regimental improvido.” (STJ; AgRg-AREsp 1.585.414; Proc. 2019/0280306-5; TO; Sexta Turma; Rel. Min. Nefi Cordeiro; Julg. 19/05/2020; DJE 25/05/2020).

Isso porque são crimes contra a fé pública: Falsificação de documento público, Falsificação de documento particular, Falsidade Ideológica e Falsidade de atestado médico.

Cumpre destacar que o STF tem entendido que, para incidência do princípio da insignificância, alguns vetores devem ser considerados, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica causada (cf. HC n. 84.412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, unânime, DJe 19.11.2004).

No STF há diversos julgados no sentido da não aplicação do princípio da insignificância aos delitos cometidos contra a fé pública: HC 93.251/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 22.8.2008; HC 96.153/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 26.6.2009; HC 96.080/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 21.8.2009; HC 97.220/MG, Rel. Min. Ayres Britto, Segunda Turma, DJe 26.8.2011; HC 107.171/RN, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 7.10.2011; HC 105.829/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe 3.10.2011; HC 111.266/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 12.4.2012 e HC 112.708/MA, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe 18.9.2012.


Fonte: https://rogeriotadeuromano.jusbrasil.com.br/artigos/1618277769/a-falsificacao-de-atestado-medico?utm_campaign=newsletter-daily_20220819_12620&utm_medium=email&utm_source=newsletter

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