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quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A prática de prender e condenar com base em depoimento policial. Algo a ser urgentemente superado.

A Quinta Turma do STJ na Sessão do dia 23/08/22 colocou em destaque o AREsp 1.936.393/RJ de relatoria do Ministro Ribeiro Dantas. O Ministro Joel Alan Paciornik pediu vista.

Ribeiro Dantas leu a ementa do julgado, onde pude transcrever boa parte do julgado, fazendo uma análise opinativa ao final, senão vejamos:

Conforme orientação atualmente dominante na jurisprudência desta Corte Superior a palavra dos policiais responsáveis pela prisão do réu em flagrante é fundamento idôneo e suficiente para prolação de sentença condenatória. Pelas razões aqui declinadas, é necessária a superação desse entendimento. É ingênua e irreal a ideia de que policiais nunca mentiriam em seus testemunhos ou que nunca teriam motivos para incriminar falsamente um réu que não conhece. Consoante vasta produção de pesquisa nacional e internacional há diversas razões que limitam a credibilidade do depoimento policial. Desde os viéses cognitivos próprios das corporações até a existência de incentivos, como pressões por produtividade, ausência de fiscalização, criação de uma aparência de dureza no combate ao crime para a fabricação de acusações falsas. Na realidade, a má conduta policial é uma das principais causas de anulação de condenações de pessoas inocentes. Tais fatores de riscos são ainda maiores no cenário brasileiro em que no ano de 2021 a polícia foi responsável pela morte violenta de 6145 cidadãos, 13% do total de assassinatos cometidos naquele ano ou 17 mortes por dia. Existe uma visão bélica nutrida pelas instituições policiais que prejudica objetivamente a confiabilidade das provas por elas produzidas, compreensão aliás adotada já por esta Quinta Turma no julgamento do REsp 1.916.733/MG.

As mesmas constatações podem ser encontradas em diversos estudos produzidos por organizações independentes, estatais e não governamentais, nacionais e internacionais. Presumir a veracidade do depoimento policial até a impossível produção de prova de sua falsidade viola as regras dos artigos 155156 e 158-A a 158-F do CPP, invertendo em prejuízo da defesa o ônus que é exclusivamente da acusação. Há evidente injustiça epistêmica, tanto testemunhal como hermenêutica, na atribuição de uma posição a priori de superioridade ao testemunho do agente policial sobre a versão do réu. Admitir a condenação baseada unicamente nos depoimentos policiais equivale a dizer que basta que alguém seja acusado por uma autoridade estatal para que sofra uma condenação criminal.

Diversamente do que proclama majoritariamente as instâncias ordinárias, o art. 155 do CPP e o regime de livre apreciação da prova não se pautam no simples convencimento psíquico do magistrado, mas sim na existência de critérios objetivos de racionalidade que viabilizem um controle intersubjetivo da valoração probatória feita na sentença. Posicionamento doutrinário virtualmente unanime na esfera internacional.

A hipótese acusatória pautada exclusivamente nos depoimentos de policiais falha no critério da corroboração, porque não é produzida nenhuma outra prova independente capaz de confirmá-la. Da diferenciação, porque a prestação do testemunho pode também encobrir uma acusação falsa formulado pela polícia, não havendo provas adicionais que permitam verificá-la e da falseabilidade por ser na prática impossível a defesa produzir prova da falsidade das alegações dos agentes.

A exigência de gravação em áudio e vídeo do momento da abordagem policial diferentemente traz um meio de corroboração independente e imprescindível para a hipótese acusatória, conferindo ao julgador maior segurança para o proferimento de um decreto condenatório e evitando a condenação de pessoas inocentes. Configurar perda de chance probatória à inércia estatal em buscar meios independentes de confirmação da tese acusatória contentando-se a acusação a produzir o mínimo de prova com a apresentação dos testemunhos dos policiais, teoria já encampada também pela Quinta Turma ao julgar o AREsp 1.940.381/AL.

O uso de câmeras corporais pela polícia é reconhecida por uma miriade de estudos empíricos como um dos meios mais eficazes para evitar a letalidade e a tortura policiais concorrendo assim para o atendimento de compromissos assumidos pelo Brasil na esfera internacional e cuja observância é frequentemente cobrada pelos organismos que o país integra. Existe uma clara conexão entre a admissão da condenação baseada somente nos depoimentos dos policiais e as práticas de tortura, homicídio e incriminação de inocentes pela polícia, porque o entendimento jurisprudencial atualmente dominante fomenta um vácuo de controles efetivos e objetivos da atuação policial. A palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória.

É necessária para tanto sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e video. Ausente a filmagem nas provas materiais colhidas pelo policial quando testemunhou os fatos, como a droga, armas ou outros objetos apreendidos na prisão em flagrante só podem ser usadas para fundamentar a condenação se sua vinculação ao réu for corroborada por prova independente da palavra do policial que as arrecadou.

O Ministro Ribeiro Dantas, continuou, afirmando que ao julgar o AREsp 1.936.393/RJ buscava-se a superação de uma ratio decidendi anterior. Houve pedido de vistas, como dito, pelo Ministro Joel. Teremos que aguardar para ter acesso à íntegra do julgado.

De uma análise perfunctória, vemos que esse julgado é muito importante, pois vemos diariamente a prisão cautelar de indivíduos tão somente com base em prova testemunhal advinda unicamente da autoridade policial.

Só a nível de exemplo, em audiências de custódia na Capital pernambucana, Juízes se valem de Súmula de Corte Regional para decidir pela prisão cautelar (preventiva), a exemplo da Súmula 75 do TJPE, ex vi:

É válido o depoimento de policial como meio de prova

No Rio de Janeiro, por exemplo, há súmula de número 70 do TJRJ com teor semelhante, contudo autorizando a condenação com base em depoimento de autoridades policiais, senão vejamos:

O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação.

Ora, as Cortes Regionais viabilizam uma atuação judicial por parte dos juízes pautada unicamente em prova advinda de atuação policial, onde indivíduos permanecem presos ou são condenados, unicamente com a palavra do policial.

Como disse o Ministro Ribeiro Dantas é ingênua e irreal a ideia de que policiais nunca mentiriam em seus testemunhos ou que nunca teriam motivos para incriminar falsamente um réu que não conhece.

A máquina judiciária criminal somada ao aparato estatal de acusação valem-se de provas fracas para manter indivíduos presos ou para condená-los, cabendo ao STJ anular tais provas, como no citado exemplo.

O julgado advindo do AREsp 1.936.393/RJ é de fundamental importância para se rever a ratio utilizada por julgadores que prendem e condenam unicamente com base em testemunho policial, bem como por órgãos acusadores que se vinculam a provas insuficientes para lançar indivíduos na Justiça Criminal.

Há inclusive de se reavaliar as jurisprudências regionais a exemplo da Súmula 75 do TJPE e Súmula 70 do TJRJ.

Fonte:

https://mateusqlins.jusbrasil.com.br/noticias/1621687552/a-pratica-de-prender-e-condenar-com-base-em-depoimento-policial-algo-a-ser-urgentemente-superado

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